Em Manaus, existiu a “Cidade Flutuante”, desaparecida há exatos sessenta anos. Restou, como descreve Ítalo Calvino, em Cidades Invisíveis, sobre a memória da cidade Maurília, que “o viajante é convidado a visitar a cidade ao mesmo tempo em que observa uns velhos cartões-postais ilustrados que mostram como esta havia sido”. Deste modo ocorre, em nossos dias, com nossa extinta cidade fluvial, apenas é recordada em postais, recortes de jornais e algum trabalho acadêmico.
Álvaro Maia (1893-1969), então Senador,
escrevendo em coluna própria no Jornal do Commercio, talvez uma de suas últimas crônicas, pois morreu em maio, desaprovou o resultado da expedição
sobre aquele curioso fenômeno habitacional.
Recorte do Jornal do Commercio, 16 mar. 1969
Desapareceu a “Cidade Flutuante”
em poucos dias sob a ação das autoridades, porque usurpava áreas do cais e
prejudicava as casas comerciais do litoral. Tinha movimento próprio -
restaurantes, médico, dentista, escolas, pequenas lojas, boates. Atendia, de preferência,
aos fregueses apressados dos beiradões, que ali encontravam o mais necessário,
inclusive damas fáceis e folguedos noturnos. Vendiam os seus produtos,
abasteciam-se, ingeriam as meladinhas e regressavam aos paranás e lagos pelo
primeiro rebocador.
Restam fotografias e postais.
Desaparecida, os seus habitantes procuraram os subúrbios da Capital, as ilhas
próximas, ou se encoivararam pelos igarapés.
Isolados e dispersos, perderam a
unidade comercial, deixando também de contribuir para a arrecadação, pelos
pequenos estabelecimentos que cerraram as portas e transações. Onde param esses
moradores, onde mourejam.
Motores, canoas, igarités pousam
nas praias, à margem do rio Negro, em tapiris ou casebres equilibrados sobre
cedros, açaens (sic) e sumaúmas. As ruas vizinhas passaram a fluir
sossego, sem as serenatas e rapapés tamboriladas das boates. (...)
Muitos flutuanteiros da “Cidade Flutuante” salvaram
suas barracas e seus velhos cedros, fugindo para os jutais. Mas vieram as
enchentes, sacrificando parte da produção.
Ora, certo dia, alguns juteiros, mais uma
vez afogados pelas chuvas, ouviram dizer que terras fartas, nas zonas
suburbanas de Manaus, são do governo. São do Governo, são dos pobres. Rumaram e
remaram para esses becos da promissão. Igarapé, capoeiras, pretas ou arenosas.
Tudo bom e bem. Tomaram conta de um lote, escavaram buracos para os primeiros
esteios. A notícia correu mundo. Outros chegaram: vinham dos jutais, dos
escombros da “Cidade Flutuante”, na ilusão de melhoria e empregos na Zona
Franca.
Vai surgindo o “Bairro da Palha”, entre os
bairros de São Jorge e São Raimundo. É interessante ver o movimento do novo
bairro, mesmo em tarde chuvosa. Já existem pequenas ruas, escola, boteco, até
um teatro-mirim, e mais de mil habitantes.
Improvisação de poucos dias. Descobrissem os favelados, os mocambeiros terras assim! Juteiros, herdeiros da “Cidade Flutuante”, seringueiros desabrigados, pescadores sem redes de náilon, citadinos sem emprego caminham para o “Bairro-da-Palha”, a quinze minutos de Manaus, em ótima rodovia asfaltada...
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