Sob
o sol fugitivo, a tarde prisioneira
abre
à invasão da noite as águas do Madeira...
Calor
de Agosto. O vento encrespa o sorvedouro,
que
embala ao vento langue as lentas ondas de ouro....
—
Rema, barqueiro amigo! A noite se avizinha...
Não
risca o espaço escuro uma asa de andorinha...
Deixa
o barco fugir à flor da correnteza,
e
apresta as férreas mãos com vigor e presteza...
Há quem te espere ansiosa, entre as portas da casa,
mostrando
à boca em sangue um sorriso de brasa...
O
sol filtra na queda o derradeiro feixe...
O
nosso barco investe e corre como um peixe,
ora
em quieto remanso, ora em maresia,
por
entre a escuridão da mata fugidia...
Recurvo,
o corpo de aço escandece e trabalha,
mas
a ideia repousa à janela de palha,
onde
um rosto amanhece e um corpo alvoroçado
é
um maduro pomar, onde cresce o pecado...
Tudo,
em nosso redor, é um solene incentivo
a
esse beijo de fogo, a esse abraço furtivo:
o
vento, que te afaga, enchendo-te de frio,
este
encanto, esta noite, esta cena, este rio,
tudo
é um riso imaturo, uma carícia calma,
que
se lançam do céu sobre as misérias da alma.
Ao
rever a ampla selva em que folguei menino,
sinto
o meu coração fender-se em brônzeo sino,
como
se a terra fosse uma igreja, uma aurora,
e
o meu corpo em delírio uma torre sonora...
Às
ilusões da infância, a minha vida acorda:
cada
sentido é a força e cada nervo é a corda,
que
me levam no rio — áurea flor de bubuia,
na
estranha languidez de uma branda aleluia...
A
alegria luariza o sonho...
O
sino canta
ante
a consolação desta harmonia santa...
Ajoelho
em pensamento, entrecruzando os braços,
para
beber num sorvo as selvas e os espaços...
Insculpo
em meu olhar, recolho nos ouvidos
tantos
quadros da Vida em vidas repartidos...
Longas
praias sem termo, onde alvejam gaivotas,
bosque
em cores aberto e rio aberto em notas,
árvores
de São João, sumaumeiras em prece,
doces
recordações que nunca a fronte esquece,
haveis
de embutir um dia, entre a lembrança rude,
na
prata da velhice o ouro da juventude...
Sois
o romance, a voz, que nos vem, de repente,
a
uma valsa, a um perfume, a uma vista, em que a gente
ouve,
abraça, recorda a trindade bendita
—
a mãe, a noiva, a irmã, em doçura infinita.
Vivei,
entrai em mim! Quero, tempos afora,
sentir-vos
a vibrar, como vos sinto agora,
onde
me surja a mágoa, onde me leve o sonho,
imagens
maternais de meu berço risonho!
*
* *
Mais
distante, à distância onde a caudal não dorme,
desliza
um batelão, vagaroso e disforme...
Hercules
seminus lutam, batendo a voga,
e
a espuma, em revulsão sob os remos que afoga,
confunde
a queixa humana ao rumor de fadigas
da
embarcação que lembra as galeras antigas...
— Homens, ó meus irmãos, ó párias que aí
dentro ides,
em
dolentes canções para a dor de outras lides,
que
buscais e quereis nesse destino obscuro,
despidos
de ambição, cegos para o futuro?
Nada!
Mas, na floresta onde as hordas selvagens
viam
palcos de guerra ao verdor das ramagens,
traçais
a nova estrada, ergueis o mundo novo,
por
onde há de rolar em marcha um grande povo...
Os
dias, que passais em conquistas e arrojos,
viverão
dentro em nós, cantarão nos rebojos,
como
o sangue brutal destas barrentas veias,
como
o suave dulçor destas fulvas areias...
* * *
—
Rema, barqueiro amigo! O vago céu escorre
uma
toalha de breu sobre a tarde que morre...
Estas
margens azuis são muralhas de fumo,
—
muros de sombra e medo em que vamos sem rumo...
Tudo
apavora, tudo assusta, tudo assombra,
nesta
hora de refrega entre o sol-morto e a sombra...
Há bruxedos de anões sobre as luras do charco,
louras
iaras trovando à passagem do barco...
Boia
monstruoso, à proa, o balseiro de uma ilha...
Em
cima, o bando irial das estrelas fervilha...
Erra
o bosque em perfume. Há bocas nos barrancos
e
o lindo luar nascente esparge lírios brancos ...
A
noite aumenta o espasmo em que nos debatemos,
ouvindo
no silêncio a música dos remos...
É
a recompensa... E, enquanto idealizas o beijo
da
que te espera muda, em pudor e desejo,
eu
guardo a imensa voz destas imensidades
e
encho o meu coração de vindouras saudades,
Terra,
ó mãe, que me deste, em mesma hora dorida,
a
luz do amor, o bem do sonho, o pão da vida!