CATANDO PAPÉIS & CONTANDO HISTÓRIAS

domingo, setembro 29, 2024

POESIA PARA O DOMINGO

 Quase completando um século, a poesia foi gravada por Álvaro Maia, morto em 1969.



Sob o sol fugitivo, a tarde prisioneira

abre à invasão da noite as águas do Madeira...

Calor de Agosto. O vento encrespa o sorvedouro,

que embala ao vento langue as lentas ondas de ouro....

 

— Rema, barqueiro amigo! A noite se avizinha...

Não risca o espaço escuro uma asa de andorinha...

Deixa o barco fugir à flor da correnteza,

e apresta as férreas mãos com vigor e presteza...

Há quem te espere ansiosa, entre as portas da casa,

mostrando à boca em sangue um sorriso de brasa...

 

O sol filtra na queda o derradeiro feixe...

O nosso barco investe e corre como um peixe,

ora em quieto remanso, ora em maresia,

por entre a escuridão da mata fugidia...

 

Recurvo, o corpo de aço escandece e trabalha,

mas a ideia repousa à janela de palha,

onde um rosto amanhece e um corpo alvoroçado  

é um maduro pomar, onde cresce o pecado...

 

Tudo, em nosso redor, é um solene incentivo

a esse beijo de fogo, a esse abraço furtivo:

o vento, que te afaga, enchendo-te de frio,

este encanto, esta noite, esta cena, este rio,

tudo é um riso imaturo, uma carícia calma,

que se lançam do céu sobre as misérias da alma.

 

Ao rever a ampla selva em que folguei menino,

sinto o meu coração fender-se em brônzeo sino,

como se a terra fosse uma igreja, uma aurora,

e o meu corpo em delírio uma torre sonora...

Às ilusões da infância, a minha vida acorda:

cada sentido é a força e cada nervo é a corda,

que me levam no rio — áurea flor de bubuia,

na estranha languidez de uma branda aleluia...

 

A alegria luariza o sonho...

O sino canta

ante a consolação desta harmonia santa...

Ajoelho em pensamento, entrecruzando os braços,

para beber num sorvo as selvas e os espaços...

Insculpo em meu olhar, recolho nos ouvidos

tantos quadros da Vida em vidas repartidos...

 

Longas praias sem termo, onde alvejam gaivotas,

bosque em cores aberto e rio aberto em notas,

árvores de São João, sumaumeiras em prece,

doces recordações que nunca a fronte esquece,

haveis de embutir um dia, entre a lembrança rude,

na prata da velhice o ouro da juventude...

 

Sois o romance, a voz, que nos vem, de repente,

a uma valsa, a um perfume, a uma vista, em que a gente

ouve, abraça, recorda a trindade bendita

— a mãe, a noiva, a irmã, em doçura infinita.

 

Vivei, entrai em mim! Quero, tempos afora,

sentir-vos a vibrar, como vos sinto agora,

onde me surja a mágoa, onde me leve o sonho,

imagens maternais de meu berço risonho!

 

* * *

Mais distante, à distância onde a caudal não dorme,

desliza um batelão, vagaroso e disforme...

Hercules seminus lutam, batendo a voga,

e a espuma, em revulsão sob os remos que afoga,

confunde a queixa humana ao rumor de fadigas

da embarcação que lembra as galeras antigas...

 

 — Homens, ó meus irmãos, ó párias que aí dentro ides,

em dolentes canções para a dor de outras lides,

que buscais e quereis nesse destino obscuro,

despidos de ambição, cegos para o futuro?

 

Nada! Mas, na floresta onde as hordas selvagens

viam palcos de guerra ao verdor das ramagens,

traçais a nova estrada, ergueis o mundo novo,

por onde há de rolar em marcha um grande povo...

 

Os dias, que passais em conquistas e arrojos,

viverão dentro em nós, cantarão nos rebojos,

como o sangue brutal destas barrentas veias,

como o suave dulçor destas fulvas areias...

 

* * *

— Rema, barqueiro amigo! O vago céu escorre

uma toalha de breu sobre a tarde que morre...

Estas margens azuis são muralhas de fumo,

— muros de sombra e medo em que vamos sem rumo...

 

Tudo apavora, tudo assusta, tudo assombra,

nesta hora de refrega entre o sol-morto e a sombra...

Há bruxedos de anões sobre as luras do charco,

louras iaras trovando à passagem do barco...

 

Boia monstruoso, à proa, o balseiro de uma ilha...

 

Em cima, o bando irial das estrelas fervilha...

Erra o bosque em perfume. Há bocas nos barrancos

e o lindo luar nascente esparge lírios brancos ...

 

A noite aumenta o espasmo em que nos debatemos,

ouvindo no silêncio a música dos remos...

 

É a recompensa... E, enquanto idealizas o beijo

da que te espera muda, em pudor e desejo,

eu guardo a imensa voz destas imensidades

e encho o meu coração de vindouras saudades,

Terra, ó mãe, que me deste, em mesma hora dorida,

a luz do amor, o bem do sonho, o pão da vida!   

Revista Redempção

Ano I – maio 1925 – nº VII

 

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