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sábado, novembro 17, 2018

RAMAYANA DE CHEVALIER – CONTO (3)



Este conto foi gerado pelo acadêmico Ramayana de Chevalier (1909-1972), e divulgado no matutino A Gazeta (4 novembro 1961). Na ocasião, Chevalier dirigia a Secretaria de Administração do governador Gilberto Mestrinho.


Recorte do jornal





Seu Naftalino andava macambúzio, jururu, zaranza. Andava vendo tudo esquisito. Isso por causa da Micas, sua esposa. Português de fibra, dando duro no trabalho, de uns tempos para cá andou notando umas diferenças na mulher. Não que ele fosse algum albardão, desses que descem o jacarandá nas caras metades. Até que a tratava com muito carinho. Cinema, uns jantares fora, umas chanfanas no boteco do seu Anibal, arraiais, fandangos no Luso Sporting, uma vidinha. Afinal, seu Naftalino não era rico, não possuía automóvel, mas gastava.

A Micas sempre fora de lei. Companheira para todo serviço, como diziam seus compadres. A tina era o seu espelho e os seus braços e os seios, com o trabalho, enrijaram e ficaram firmes e bem torneados. Tinha umas ancas roliças e duras, acostumadas a debruçar-se sobre a tábua de esfregar, montadas numas pernas grossas e cabeludas, de enroscar.
O casamento do seu Naftalino fora-lhe uma carta d'alforria. Trabalhava numa casa de ferragens, a soldo dobrado, e a trabalho d'escachar. Sol a sol, como se dizia costumeiramente! Entrava com as albas e saía com as estrelas. Almoçava lá mesmo, na mesa dura do armazém, umas linguiças com azeitonas e pão. Depois que viu a Micas, sobrinha do patrão. Alvoroçou-se. Sonhou. Teve delíquios. A mocinha era um pedaço. Sacudia os peitos, como um anúncio da Nestlé. Seu Naftalino, perdido de paixão, casou-se. Seu Naftalino era exagerado. Na primeira noite, deixou a Micas em panos quentes. A pobrezinha não se pode erguer do leito, durante dois dias. Foi um ataque multilateral. Depois, tudo ficou azul. A portuguesinha apaixonou-se pelo esposo e seu Naftalino andou emagrecendo uns quilos. A ginástica sueca era braba. Foi por isso que, depois de uns meses, Micas andou estranhando o marido. Seu Naftalino saía de casa para o trabalho e só voltava depois de nove horas, fatigado como um muar, caindo na cama, de cara virada para a parede, sem mais aquela. Quando muito, uma explicaçãozinha ligeira: “Os rapazes me pegaram de jeito, ó Micas, sinuca, sabes? Andei tendo sorte, mas depois me afundei e eles me prenderam até agora!”. E caía para o lado, roncando.

Um dia, Micas surpreendeu-lhe no ombro, um cheirinho suspeito. Aquilo não era suor dele, nem perfume, nem coisa de rua. Era um odor humano, um cheiro de bodum, firme, obsidente, infiltrador. Micas interrogou-o devagarinho, depois adotou uma tática marota. Disse lhe que até gostava daquele cheiro, profundo, animalesco, excitante.
Seu Naftalino sentiu-lhe brilhar os olhos. Incendiou-se. “Não te desagrada este cheiro? É a promiscuidade do ônibus! Mas não te desagrada, ó Micas?”. E já, perturbado, de olhar vesgo, empurrava a esposa para o leito, como um bode. O cansaço não atrapalhava mais. Micas falava-lhe sempre do tal odor, e aguardava-o serenamente, para o ataque. Com isso, restabelecera-se o clima sexual do início do casamento. Mas a portuguesinha vigiou-o, para averiguações, sem que ele percebesse. Até que o viu entrando no cortiço da Marlucia, mulata quartuda, de corpo rijo e embriagador, capaz de colocar a nocaute todo um regimento. Era ali a perfumaria do seu Naftalino. Micas não estrilou, não se deu por achada. Todas as vezes que o marido chegava fora de horas, ela cheirava, como uma cadela no cio. Já sabia onde localizar o bodum, segui-lo como um perdigueiro, afundar o nariz nele para excitar-se, esperando a posse, tão endiabrada.

Seu Naftalino ficava fora de si, com o hábito da esposa. Atirava-se a ela, ganindo. Já nem cuidava mais de preservar-se do contágio axilar da Marlucia. Vinha como estivesse, tresandando, para a nova experiência conjugal. A Micas remoçara. Não tocava no assunto, para evitar discussões e não perturbar o clima de integração genésica do casal.

Um dia, inteiramente viciada naquele odor, Micas não se conteve mais. O marido estava no trabalho, ela sozinha, aspirando o ar, de ventas abertas, como uma égua sedenta, saiu pela porta, quase correndo, entrou pelo cortiço a dentro, invadiu o quarto da Marlucia e, diante do espanto da outra, abriu-se: “Eu sou a esposa do Naftalino! Mas não vim brigar! Já conheço o seu cheiro há muito tempo, nas roupas, no corpo do meu marido! Não aguento mais! Quero senti-lo ao vivo, como ele o sente, aspirar seu corpo loucamente!”. E, avançando para Marlucia, arrancou-lhe o vestido, rasgou-lhe as roupas íntimas, ergueu-lhe o braço bruscamente e, caindo sobre ela, com o nariz afundado na sua axila sumarenta, ali ficaram as duas, enrolando-se, grunhindo, devorando uma à outra, aos arrancos. Desde esse dia, freguesa habitual das visitas à Marlucia, Micas se tornou serena e simples como dantes. Quem passou a pesquisar-lhe o cheiro dos vestidos, foi o seu Naftalino.

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