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terça-feira, novembro 13, 2018

HOSPITAL DO SERINGUEIRO


Conheci o multiartista Anísio Mello (1927-2010) quase ao final de sua existência, lembrando que o assisti até seu falecimento no primitivo Hospital Getúlio Vargas. Com ele conversei repetidas vezes, tendo a oportunidade de conhecer algumas de suas realizações. E uma relevante aspiração.


Correio do Norte
Residindo na capital de São Paulo, funcionário do Banco da Amazônia, Anísio Mello fundou um pequeno jornal, de circulação quinzenal. Seu título: Correio do Norte, do qual possuo uma coleção, cortesia do fundador.
Desconheço como era feita a circulação, creio que os anúncios pagavam a impressão e, desse modo, era enviado pelo correio para os amazonenses. Sim, havia assinaturas.
Em suas páginas, acompanhei o sonho do casal Anísio e Lindalva Mello de construir o Hospital do Seringueiro, em Eirunepé (AM). Não obstante o esforço do casal, a construção não teve sucesso. E, para entender mais, compartilho a página em que o acadêmico e político Álvaro Maia disserta sobre essa aspiração.


(...) Sob esse aspecto e métodos primitivos, não devem temer os seringueiros as dificuldades de outros tempos, quando se insulavam nas matas, sem medicamentos e sem médicos, recebendo a morte como uma visita natural e amiga.
As leis do trabalhismo atingem, pouco a pouco, os solitários das selvas, então amparados pelas missões religiosas. O seringueiro passou a ser a causa de reivindicações de preços, de melhoramentos, de romantismos econômicos. Não raro, pouco auferia e muito sofria. Desenhou, na tipologia do início deste século, umas linhas de heroísmo, em que se inspiraram até projetistas de monumentos — o monumento do seringueiro, inspirado em um desbravador sadio para dez vencidos pelas endemias.
Existem, entretanto, os que lhe palparam as angústias a graus de termômetros sem descida, ou com uma descida definitiva, pelo colapso da própria vida.
* * *
Anísio Mello, em Eirunepé (AM)
Maria Lindalva de Mello, nascida em seringal de Eirunepé, entre o frio andino e o calor do subsolo, nas vizinhanças do petróleo peruano, viu e sentiu o drama florestal, musicando a sua juventude privilegiada de inquietações e panteísmos. Foi o seringal a sua primeira escola; primeira professora a sua própria Mãe e, nas paxiúbas dos florestários, também professora, ministrou as primeiras aulas, ensinou as preces que lhe ensinaram. Viu, de perto, a desfalecente tristeza das crianças minadas pelas febres e ancilostomoses, o falecimento de mateiros, que penetravam as veredas, e das parturientes, amortalhando-se, paradoxalmente, entre anemia e sangue.
Eirunepé está a 20 dias de viagem de navegação de Manaus e a 4 horas em hidraviões. Município recortado de rios, coalhado de praias nos verões longos, alia uma brava gente, que amanhece e dorme com o trabalho. Mas os aviões e o fascínio das fronteiras abriram perspectivas aos monges dos machadinhos, acostumados a madrugadas entre árvores; visionaram padrões melhores de vida em regiões diferentes. E há necessidade de mantê-los nos postos de luta, proporcionando-lhes melhores e maiores elementos de resistência, numa hora, em que o Nordeste, viveiro de trabalhadores, possui caminhos abertos para outros Estados mais remunerativos.Quando pensou assim, num sonho e ação de gratidão e humanidade, Maria Lindalva não mais estava sozinha: unira-se a um esbanjador de coloridos, Anísio Mello, pintor e poeta, jornalista e conhecedor dos problemas do Amazonas.
Uniram-se em Eirunepé e, um dia, obedientes aos fatalismos das heranças nordestinas, partiram para São Paulo, a pátria generosa de paulistas e brasileiros, sem conservadorismos exclusivistas, com os braços sempre abertos para todos os que trabalham. 
Anísio e Maria Lindalva fundaram também um lar em que vivesse o Amazonas — “Correio do Norte”. A alma dos seringueiros foi cantar nas usinas do sal, no crepe, na borracha, nas madeiras, em vários produtos consumidos em São Paulo, que, verdadeiramente, pelos auxílios prestados aos nossos comerciantes, é um Estado merecedor de confiança e gratidão. 
E agora?
Com aferro às selvas maternas, ao arrojo das pioneiras a jornalista estende os olhos para uma obra admirável — o Hospital do Seringueiro, em Eirunepé, o sanatório tropical às crianças, hoje adultas, que não tiveram assistência regular nem na bora de sua rústica anunciação, nas lindas manhãs de Eirunepé.
Quanto custa, quanto vai custar o hospital? Custar em dinheiro, meses, anos, dada a lenta escalada do material, no “rio mais sinuoso do mundo”, o Juruá de sacados e voltas, acostumado a movimentar terras e águas, a prender barrações em tranquilidade de lagos? Ninguém sabe. Como os templos medievais, que se marmorizaram e cresciam com os séculos, denunciando estilos diversos de arquitetura, o Hospital do Seringueiro funcionará com a primeira sala e o primeiro leito de maternidade.

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