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Publicava ao seu bel prazer artigos panfletários contra o governador anterior (Plínio Coelho), porém, escrevia sobre diversos temas, empregando as facetas de seu vasto conhecimento. Escrevia muito bem, lembram seus contemporâneos.
Do estoque de suas publicações recolhidas naquele ano, escolhi a que segue abaixo, circulada na edição de 8 de agosto de 1961, para esta postagem. Nela, Ramayana descreve a situação da cidade do Rio de Janeiro, onde morava, em confronto com sua cidade natal: Manaus.
Minha velha Manaus
NÃO sei de sensação mais terna e mais doce do que esta que eu sinto, quando volto à Manaus, sempre nova para o meu coração. Riscando o céu como um meteorito, na vertigem de uma viagem quase estelar, depois do rasgão marciano de Brasília, o vortilhão amazônico nos recebe ao jeito de um mundo novo e eterno. Vista sob aspectos simples e triviais, a Guanabara está ficando desumana. Os seus três milhões e trezentos mil habitantes vivem num estado quase hipnótico, aturdidos, esmagados pela confusão maciça da cidade imensa.
De um lado, o custo da vida quase impossível. Do outro, o custo da morte, inacessível. Vive-se, no Rio de Janeiro, num eterno problema de aterrissagem em voo cego. A luta está, cada dia mais, insustentável. A cidade formigueja com os seus oitocentos mil favelados. Dito assim, parece normal. Avalie-se, contudo, o que seja uma cidade cheia de úlceras no estomago, que são as suas favelas, com o grave desígnio de não poder curá-las senão sob medidas tão drásticas e sumárias, que serão piores que a doença.
O proletariado enorme, arrasta a sua existência pesada e suja. Não por sua culpa, mas pelas condições de inabitabilidade da metrópole confusa. O impulso da desgraça, somado à necessidade de viver, projeta-se no quadro da estatística criminal. Mata-se, hoje, com extrema facilidade no Rio de Janeiro. Não se trata só dos crimes sexuais, que esses existem em todas as grandes aglomerações humanas. O crime da fome, do empuxo da fome, da vingança do faminto contra os que vivem bem. Nos bairros mais engalanados, Copacabana, Ipanema, o assalto ao transeunte é comum.
Até de dia, pela manhã, luz meridiana, o crime se consuma, em cores violentas. Já não se anda descuidado e tranquilo, com a família, numa rua noturna do Rio de Janeiro. A polícia está numericamente inferior ao que é preciso. As feiras livres perderam o seu encanto. Poucas coisas são vendidas a preços convidativos. Tudo caro; pela hora da morte, como diria um historiador. O transporte continua horrendo, sempre mais indigesto. A velocidade dos carros, uma alucinação. O congestionamento do tráfego, um absurdo.Duas coisas salvam, por exemplo, aquele que vive do túnel para o infinito: a praia e o comércio próximo de casa, sem problemas se o dinheiro existe. Mas essas duas virtudes não atingem ao botafoguense, ao centrista, ao zonanorteano. Esses, com a rara exceção do tijucano, vivem torrados no verão e esfriados no inverno, sem salvação.
Para virem à cidade, ou se trituram no ventre de um trem elétrico, numa experiência de fetos em “délivrance”, ou realizam uma viagem da qual não esperam voltar, mercê da loucura dos ônibus e lotações. Os seus empregos estão sempre situados no ponto antípoda ao do seu lar. Para comer, se são operários, levam as suas marmitas, sempre frias, de gordura coagulada, de gosto azedo, mesmo aquecidas na hora. Se são da ciasse média, ou fazem outra viagem igual para comer, ou almoçam um alimento suspeito, nos botecos do centro, sujos e sem fiscalização.
Cinema? Só nos pulgueiros do subúrbio, que no centro e zona sul uma entrada subiu para cem cruzeiros, comumente. Teatro? Conversa... Televisão? Só pra quem pode. Futebol? Bem, esse, para quem quiser sofrer com o transporte e os apertões da entrada do Maracanã, ainda vigora. Mas vocês já pensaram no sofrimento de um pobre, de regime forçado, que gasta o seu magro vintém numa entrada do Maracanã e sai de cabeça inchada com a derrota do seu Mengo? Além da queda, coice.E as escolas, que são insuficientes? E os empregos, cada vez mais difíceis? E o Ardovino, perseguindo os casais que se defendem, porque o Lacerda, nesse terreno, não é de nada? E o desespero dos que se mudam, com uma diferença monstruosa no aluguel, como se residir fosse um crime da espécie humana? E os sapatos a quatro e cinco mil, quando prestam?
E a tortura de ter que soltar as filhas, nos trabalhos, com a fúria dos bandidos sociais em volta delas? E a classe média, que não tem liberdade de vestuário do proletariado e possui todos os defeitos de representação da classe alta? E o deboche de uma classe privilegiada, volutuosa, cheia de vantagens, gastando a rodo, num descalabro perante um povo que sofre e mastiga o seu sofrimento em silêncio, de estômago vazio?
Não, amigos, eu não estou falando dos que viajam para o Rio de Janeiro em estado de graça. Não. Eu falo dos tripulantes do barco, dos que trabalham ali, dos que amargam aquela vida. Paisagem não engorda ninguém, não torna feliz uma alma despedaçada pela injustiça imobiliária. Pobres moças desavisadas; que estão loucas para ir para a Guanabara, num programa de “expansionismo”! Pobre pingentes da zona norte, ou da zona sul, espectadoras e personagens do seu próprio drama, que é a pobreza e a ilusão!
Não falo dos turistas, de dentro ou de fora, ricos e felizes, que veem o Rio de Janeiro de azul celeste, com boates, teatros, cinemas de luxo, restaurantes alegres, bailes de entradas caras, farras no Joá e noitadas no Bem, de São Conrado...
Não falo ricos, que esses já nasceram de “JK”. Olho para baixo e me sinto sempre agasalhado na minha cidade pobre e amiga, tão cheia de simplicidade, nesta Manaus, que era jovem e está ficando antiga, onde o calor é pra galo, mas a fraternidade ainda vale um sacrifício. Quando minha cidade estiver iluminada, festiva, aumentada, então falaremos em outra linguagem, frente aos turistas que nos humilham com as suas perguntas cretinas e com a sua burrice internacional... *
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