Enredado com a leitura de Suíte Crítica: estudos
sobre a poesia de Luiz Bacellar, livro organizado por Allison Leão &
Mariana Vieira, e editado em 2023, voltei aos meus papeis arquivados. Para meu
gaudio, encontrei a análise que o falecido acadêmico Anthistenes Pinto elaborou
sobre a poesia daquele poeta. A apreciação foi publicada no Jornal do
Commercio, edição de 28 abr. 1974, aos vinte anos de criação do Clube da
Madrugada.
Estamos diante de uma poesia rica de significados estéticos. Luiz Bacelar é o faber dessa matéria construída por sutilezas emotivas e artifícios verbais que a tornam, para muitos, um tanto inapreensível ao primeiro contacto. Surgiu de corpo inteiro na literatura amazonense ao ser laureado no Concurso de Poesia da Prefeitura Municipal do ex-Distrito Federal (1959), que premiou seu livro de estreia "Frauta de Barro" mediante parecer favorável da Comissão Julgadora constituída por Manuel Bandeira, Carlos Drumond de Andrade e José Paulo Moreira da Fonseca. A dificuldade encontrada na convivência com a sua poesia, decorre tranquilamente de ser o autor um poeta que exige de si mais do que lhe podem fornecer as meras circunstâncias do cotidiano poético, surgindo PARI PASSU a febre criadora de renovar palavras, de perquirição do ilógico no levantamento das possibilidades metafóricas de transformar o prosaico, a lágrima, o riso, o tédio, o gesto e o sonho, em versos que se instituem numa realidade proposta pelo artista.
O
meu torpedo de tinta
que
explode em versos singelos
--
vozes do povo, farelos
desta seara nunca extinta;
Poesia fácil de entender, esta poderia ser
a forma de classificá-la dentro do sistema -- um tanto quanto rígido, formal --
de comunicação poética do autor com a inteligência de um público exigente, cujo
nível de sensibilidade se coloca numa escala fora dos sentidos comuns, por
assim dizer, numa altura livre das interferências genuinamente epidérmicas.
Mesmo assim, a quase totalidade do seu livro “Frauta de Barro” traz no seu bojo
“as vozes do povo, farelos desta seara nunca extinta”; prevalecendo os temas
simples do dia-a-dia poetizável sobre o jogo artificioso das imagens corroídas
pela sarna do parnasianismo, cujos símbolos apanhados no celeiro comum das
estrelas, servem apenas de equilíbrio na estrutura dos sonetos e poemas.
Jamais um poeta esteve tão fisicamente
presente, com pés firmes nas ruas de sua comunidade, sentindo-a com tantas
emoções, sensível ao toque do acordar exato com as vozes dos pregoeiros,
integrado, finalmente, nos acontecimentos sociais que o circundam:
Há tanta angústia antiga
em cada prédio;
em cada pedra, -- nua e
gasta. E agora
em necessário pranto que
demora,
o amargo verso vem como remédio
pelos sonhos frustrados
de cada hora
da ingaia infância.
Madurando o tédio
nos becos turvos, porque
exige e pede-o
inquieta solidão que
assiste e mora
em
cada tronco e raiz, calçada e muro:
Chora-Vintém,
o Pau-Não-Cessa. Impuro
se
derrama em palor de luta morta
nas
crinas tristes, no anguloso flanco:
memória
e angústia fundem-se num branco
cavalo manco numa rua torta.
O poeta que assim traduz seu conúbio com os
limites do seu mundo externo, obviamente que fez à sua opção: estar
umbilicalmente compromissado com os seus semelhantes, custe-lhe embora essa
opção tropeços e desenganos ingênitos à natureza dos seres gerados do homem.
Neste livro se incluem os primeiros mapeamentos de um espaço conquistado para
receber as formas imutáveis de uma poesia que já nasceu madura, e que se faz no
tempo com a mesma perseverança das ruas, prédios e telhados que urdem a solidão
urbana dos seus temas prediletos. Não se pode mais ler o livro sem ligá-lo ao
homem. Cada página sua revela o inefável dos mistérios que se dividem entre os
bens do sangue e a rigorosa linguagem de amor que o poeta dedica aos objetos do
seu cotidiano.
“Sol de Feira”, editado em 1973, dez anos
depois do seu livro de estreia, escuda-se igualmente na chancela de um primeiro
lugar (Prêmios Estado do Amazonas de 1968), em cujo relatório, o Conselho
Estadual de Cultura depõe: “O poeta mostra neste livro que a poesia é tão fácil
quanto a manga, o cacau, a tangerina, a melancia, a graviola, o maracujá, o
murici, o fruta-pão”. E vai mais longe, pois enche seu cabaz (ou paneiro) de
todas as espécies deparadas no caminho, para ofertá-las em sumo e canção aos
famintos de corpo e espírito. São versos populares, e formam certamente ao lado
daqueles que fazem hoje do cancioneiro popular, um veículo que aproxima a
cultura do povo, numa constante permuta de costumes e sentimentos que o poeta
refunde e transfigura.
Apesar das comparações eruditas, através
das quais ele invoca os mitos gregos e a história asteca, seu emprego não tem
de abusivo ou pedante, não chega, por isso, a constituir obstáculos “ao leitor
comum”. Apesar do julgamento proferido pelo relator do prêmio, descobre-se em “Sol
de Feira” uma poesia bastante laboratorial, erudita mesmo e até certo ponto
distanciada do povo e de sua origem simples no pomolário amazônico, dando a
impressão de ter sido modificado durante os cinco anos que mediaram de sua
publicação. Seja, no entanto, válido arriscar que do ponto de vista técnico
Luiz Bacelar, atingiu um nível bem acentuado, ombreando-se com o que existe de
mais apurado na arte poética dos nossos dias. Prosseguindo na linha formal de “Frauta
de Barro”, não se deteve o poeta diante das exigências dos rondós populares de “Sol
de Feira”, afinando seu instrumento regional pelos acordes de Apolo e o
capricho dos deuses astecas.
Conclusões: saboreou as frutas no pomar e fechou-se
depois numa torre de marfim. Enriqueceu o volume de notas, sugestões musicais e
um glossário dos pomos, mas, no contexto poemático propriamente dito, reduziu
seu universo de audiências e uma pequena elite que, ao invés das frutas
louvadas, prefere sempre a maçã, a pera e as uvas importadas. Assim, vejamos:
da bruta mata
na área trilhe
vens em perfume
grata vanilha
de parda fava
olente filha
em verde berço
de alada quilha
pólen de prata
fúlgida poalha
de brilhos magos
que o luar refrata
sobre a toalha
fria dos lagos
Salvo razões dessa ordem, a cargo naturalmente
de uma crítica menos impressionista, presenciamos neste poeta uma experiência
contínua no domínio do seu instrumento criador de belezas, com uma técnica
pessoal sem dúvida merecedora dos aplausos que tem arrancado dos nossos
melhores escritores.
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