Primeiro foi em São Paulo, em 9 de julho, quando este se rebelou, mas foi destroçado pelas Forças Federais. Este movimento acolá ficou alcunhado de "Revolução Esquecida". Duas semanas depois eclodiu no outro lado do país, em Manaus, quando oficiais do Exército e da Marinha se aliaram para depor o governador Rego Monteiro. Muito já se escreveu sobre este agitação política-militar na capital amazonense, igualmente já efetuei várias postagens sobre o tema - Rebelião de Ribeiro Junior.
Prossigo nesta semana, iniciando hoje com a crônica do saudoso João Nogueira da Matta, que pertenceu a Academia Amazonense de Letras e foi governador interino, compartilhada de seu livro Manaus por dentro (Manaus: Ed. Calderaro, 1988), que assistiu o desenrolar desta intentona.
DURANTE A REVOLUÇÃO DE 24
Com a chegada a Manaus da Expedição do Norte, em 1924, numerosa e esmagadora, deram as autoridades legalistas caçada aos “revoltosos”, que haviam retornado de Óbidos. Retornaram destroçados pela adversidade, após longos dias embrenhados no soturno da selva. Quase todos jovens de nossas tradicionais famílias, convocados pelo comando revolucionário, no atropelo da viagem de 27 BC empreendida com destino a Belém do Pará.
As turmas dos patrulheiros nordestinos, barbudos e cabeludos, de fuzil e
facão do mato — diziam que para maior êxito nos combates corpo-a-corpo —
passaram a vasculhar a cidade do centro aos subúrbios mais distantes, com a
intolerância de todos os vencedores. Infelizmente, em momentos que tais,
existem denunciantes que hoje chamam de “dedos duros”, prontos para o papel de
judas, continuadores daquele que adquiriu triste notoriedade em decorrência do
beijo maldito.
Naquela manhã, o perigo que já assediara outras áreas da cidade, chegou à Parada Campelo. Parada de bondes que vinham do centro urbano — cujo fulcro era a avenida Eduardo Ribeiro — e para ele retornavam até à estação, no amplo Largo da Matriz. Chegados àquele local, sempre frequentado por populares, rumaram pela rua Humaitá, como quem vai para a rua Carvalho Leal, na direção do igarapé. De casa em casa, à semelhança de quem procura agulha em palheiro, foram ter à residência de Dionésio Marinho, sargento que fazia parte dos insurretos. Como de praxe, entraram sem licença de qualquer natureza, com armas em punho, certos e recertos que eram os homens mais corajosos do planeta.
Dionésio Marinho chegara ao seio da família, no dia anterior, quase irreconhecível.
Cabelos nos ombros, barba igualmente crescida, magro e pálido, para rever a
mulher e os filhinhos. Fala quase imperceptível em consequência dos dias
passados sem comer — só mais nítida quando se dirigia aos parentes e amigos
íntimos. Nada de pormenores sobre os acontecimentos na longa via crucis
empreendida até Óbidos. Ao que informaram alguns rebeldes, assim que chegaram a
Manaus, o comando da tropa de Óbidos aconselhara a dispersão e o salve-se quem
puder, em face da Expedição do Norte, esmagadora em todos os sentidos. Com o
avultado número de vasos de guerra, paquetes do Lóide Brasileiro transformados
em transportes e homens armados até os dentes.
Quando os patrulheiros chegaram, Dionésio Marinho já havia sido avisado
por pessoas da vizinhança, de maneira que conseguiu passar para a casa de sua
comadre Rosmarina, ao lado. Essa senhora de grande confiança, que se
prontificara a dar-lhe a necessária guarida. -- Deixe tudo por minha conta,
compadre, que saberei parlamentar com os perseguidores sem entranhas.
Lépida, com admirável acuidade mental, soube preparar tudo muito bem. No
quartinho em que costumava trabalhar, desocupou o baú de roupa lavada e nele
escondeu o homem procurado. Por sobre o baú colocou a roupa, sem qualquer
arrumação. Em sentido diagonal, armou a rede da filha mais nova, a Dila, e
fê-la deitar-se, com recomendação de que estava para todos os efeitos enferma.
Não se assustasse com a presença dos intrusos. Amarrou a cabeça da pequena com
um lenção, depois de untá-la com óleo de andiroba ou copaíba. Disfarce
irrecusável.
Momentos depois, eis os patrulheiros mal encarados na casa de Rosmarina, bisbilhotando todos os recantos. Ao entrar o sargento no quarto, dona Rosmarina rompeu com a bateria: -- Pelo amor de Deus, respeite meu lar! Esta aí é minha filhinha convalescente de sarampo! O militar estancou, tomado de surpresa. Levantou o lençol que cobria a pequena enferma. Realmente, de cabeça amarrada, o corpo tresandando a unguento, convenceu o homem de farda que se tratava de um caso a ser respeitado. E logo de sarampo! Não foi além. Deixou até de indagar se o baú estava ocupado. Dali mesmo resolveu dirigir-se aos inferiores, dando por terminada a diligência.
Dentro em pouco seguiram os patrulheiros pelo bairro, à procura de
outros fugitivos, por determinação expressa dos homens encarregados do
restabelecimento da ordem no país. Ah! o restabelecimento da ordem interna!
Revoltosos jogados nas enxovias de Paricatuba, às margens do Rio Negro, e mais
tarde levados para as ilhas penumbrosas do Rio, onde aguardaram julgamento.
Dionésio Marinho, como excelente sargento, não dormia no ponto. Reunindo forças, com a colaboração de dois amigos, preparou-se para seguir com destino ao Curari. Viagem de canoa, na base do remo, e assim evitou nova ameaça de prisão. Quando chegaram ao flutuante no Xiborena, encostaram para comprar alguns maços de cigarro. Enquanto um dos tripulantes da frágil embarcação pedia os maços de cigarro, dois investigadores da Polícia, travestidos de caboclos, procuraram interpelar: -- De onde vêm os senhores? -- De Manaus, respondeu Dionésio. -- E para onde se dirigem? -- Vamos para casa, no Curari.
Os policiais quase surpreenderam os viajantes. Um chegou a perguntar: --Que atividade exercem? -- Somos agricultores. -- Com essa pele tão bem conservada? Dionésio Marinho não se intimidou, acostumado que estava à franqueza da linguagem de caserna. E desvencilhou-se: -- Estamos habituados aos contatos com a natureza. Usamos, na luta dos roçados, o chapéu de tucumã de abas largas. Com o trabalho, por várias semanas, à sombra da “casa de farinha”, a fisionomia ficou assim como o senhor vê.
Dada a explicação, com firmeza, foram os "agricultores” saindo de
banda, como diz o caboclo, entraram na canoa, e deram as primeiras remadas.
Nada de se preocuparem com o rio que se estendia à frente, com aquela imensidão
de águas para navegar. Assim se livrou Dionésio Marinho do torpe assédio das
forças chegadas do Rio de Janeiro, numa perseguição que só cessaria em 1930 — seis
anos depois do movimento redentor do Amazonas com a anistia ampla de Getúlio
Vargas no comando da Revolução de Outubro.
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