É natural que a grandiosidade da terra, coberta pela floresta compacta e vária e de rios imensos, ainda de população rarefeita, cheia de contrastes e antíteses, crie lendas justificativas para o que ainda é desconhecido. A explicação de certos fenômenos naturais virá com o tempo, através dos estudos e pesquisa e da ocupação efetiva.
O que se deve, desde já, ir retificando, porque diz respeito à História são os exageros que se tornam lendas acerca de homens que influíram no destino da terra. Um deles foi o coronel José Cardoso Ramalho Júnior, figura marcante que ate hoje é constantemente citada.
A relembrança vem a propósito de uma reportagem estampada na Revista de Domingo, do Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, de 13 de fevereiro corrente [1977], a respeito da Zona Franca de Manaus, que assim começa: “Em 1901, no auge do ciclo da borracha, o governador amazonense Ramalho Júnior presenteou com colares de perolas todas as coristas da Companhia Lírica italiana depois de uma apresentação no Teatro Amazonas. dizem que nessa época o chafariz do Palácio Rio Negro, sede do governo do Estado, jorrava champanha nos dias de festa.”
O amor pela verdade manda corrigir, inicialmente: a) em 1901, Ramalho Júnior não estava no poder; b) generoso como sempre foi, terá dado um colar de perolas para a atriz de sua preferência; c) o Palácio Rio Negro não existia ainda, pois o Palacete Scholz foi construído em 1913 e a sede do governo era o palácio de propriedade da prefeitura, sede atual desta, onde não existe chafariz...
A estória dos colares é igual àquelas de que o mesmo governador mandara construir o Teatro do Porto para um de suas amantes; que teria oferecido um palacete, em Cadiz, para o seu amigo Luiz Galvez Rodrigues de Arias, o “imperador do Acre”; e de que dera um leque de cédulas de quinhentos mil-réis para a conquista de uma fiel prima dona, dinheiro esse que ela teria queimado em presença do conquistador.
Convenhamos que a imaginação exagerou. A prodigalidade tem os seus limites e por mais que o Tesouro público estivesse abarrotado, não seria possível dar tanto em tão pouco tempo, na oportunidade em que obras públicas de vulto estavam em execução, como o término do Teatro [Amazonas] e sua majestosa praça fronteira; a conclusão do Palácio da Justiça; o novo palácio, onde está hoje o Instituto de Educação; calçamento de ruas; obras no Ginásio Amazonense; estrada para o Rio Branco [Roraima]; três grupos escolares e ajuda à revolução acreana, esta, predominantemente, de real magnitude.
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Conversei muito com o coronel Ramalho, depois que veio para o Rio de Janeiro morar com a filha, professora Miosótis, casada com o saudoso amigo José Victor Sobrinho, residentes à época, na rua Pacheco Leão, no Jardim Botânico. Saímos muitas vezes para o “passeio de bonde”, num circular que abrangia o Lebron, Ipanema e Copacabana.
E, vezes tantas o acompanhei à loja maçônica, onde a sua simples presença dava excepcional respeitabilidade. Caboclo elegante, seu físico lembrava muito o do ator francês Victor Francen, com o seu cavanhaque. Discreto no falar, era com entusiasmo que contava coisas de nossa terra. É inquirido sobre acontecimentos regionais de que fora participante ou testemunha, respondia: “muito exagero, muita invenção”. (segue)
Publicou dois livros de crônicas: Raiz (Rio: Copy & Arte, 1985) e Patiguá (Rio: Copy & Arte, 1993).
Ulisses Bittencourt era filho de Agnello e Zulmira Bittencourt, nascido em Manaus em 1916. Concluiu os estudos secundários em Manaus e o superior em veterinária, no Rio. Exerceu atividades administrativas em Minas Gerais, Paraná e Rio. Escreveu desde os bancos escolares, e na atividade jornalística permaneceu até o final da vida. Pertenceu, entre outras agremiações culturais, ao Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas e a Academia Amazonense de Letras.
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