por Francisco Bacellar,
pai do poeta Luiz Bacellar,
para o livro Uma Vida...
(Manaus: Editora Sérgio Cardoso, 1963)
Eu o conheço desde o tempo em que a gente arregaça a manga e "corre atrás das asas ligeiras das borboletas azuis".
De um encontro fortuito de meninos que, sem possibilidade de distração que custasse dinheiro, aproveitavam as procissões para folguedo surgiu o nosso conhecimento, informal, sem apresentação, por muito tempo, talvez, sem um saber o nome do outro que, com o decorrer do tempo transforma-se em amizade e, solidificada, ainda hoje persiste.
Capa do livro, de autoria de Getúlio Alho |
Tenciona Ildefonso breve publicar o seu livro: Uma Vida...; em se tratando de vida, seja qual o prisma visado, porém que a ele se refira, julgo-me autorizado pelo longo tempo da nossa privança, independente de ser chamado, a "meter a minha colher" e dizer algo que não tem escapado à minha observação.
Ao nosso primeiro encontro casual outros seguiram, sempre por ocasião das procissões, no pátio da igreja Matriz, onde proliferavam os vendedores de guloseimas -- o convite para os doces era fatal. Ildefonso, apreciador precoce do belo sexo, escolhia de preferência o doceiro que estivesse rodeado do maior número de garotas do nosso tope e, numa demonstração de pequeno homem endinheirado, num gesto largo e cortês lançava o seu brado de conquista pelo suborno: "senhoritas, são servidas de alguns doces? eu pago... sirvam-se à vontade". Isto dentro da mais primorosa regra da elegância que ele conserva até os nossos dias, em que a elegância tornou-se arcaica.
Certa vez, largo tempo passou sem que nos avistássemos; quando isto se deu encontrei um Ildefonso cheio de recriminações e ressentimentos.
Que tem você, rapaz? Perguntei-lhe... "Você passa por mim todos os dias e não me fala" - surpreendeu-me a acusação. Explicou... Era empregado em um botequim na rua dos Barés; um verdadeiro buraco onde a luz do sol não penetrava e, ofuscado pela claridade, na rua, não permitia ao transeunte ver lá dentro senão a escuridão. "Como poderia lhe ver no fundo de uma cova de onça?... A minha justificativa desarmou a animosidade.
Conquistador inveterado, muitas aventuras "deram-lhe na cabeça"; duas, porém, tiveram sabor imperecível: Entregador, fora deixar presente de algum apaixonado em um das muitas casas galantes que aqui existiram.
A destinatária, nordica-eslava, das que dedilhavam Chopin ao piano e davam-se ao luxo de falar francês, está no seu boudoir de cama dourada, cortinas de renda onde se mistura o acre almiscarado do pecado ao odor dos perfumes caros. Naturalmente achava-se à vontade e não há porque mudar a sua atitude.
Pela primeira vez o menino Ildefonso depara ao vivo o modelo de um quadro de Goia, e, já no país da fantasia ali vê uma fada amável, carinhosa, linda e fascinante. Por muito tempo aquela lembrança o perseguiu nítida, violenta, avassaladora; um tormento adorável para a sua vitalidade mal nascente, um pesadelo exigindo satisfação mal satisfeita. Hoje o sonho envelheceu, enrugou e os dois praças da velha guarda se cruzam sem ao menos uma continência de estilo.
Moreninha, criada, mimada e educada por família de tratamento. Rapazinho insógnito (sic) que as circunstâncias impunham a situação plebeia de trabalho humilde para prover a própria subsistência numa idade em que deveria frequentar um colégio da cidade; ousou, supremo atrevimento, suspirar pela morena - Não! cenhos carregados, portas fechadas... e Ildefonso sofre o amargo de uma paixão impossível - Depois aquelas mesmas portas se abriram, os olhares ferozes se ameigariam... mas isto foi mais tarde. Já era tarde demais.
(segue)
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