Manuel Mendonça e netos, em 1980 |
Meu pai, se
vivo fosse, completaria hoje 101 anos. Ano passado, intentei celebrar da melhor
maneira seu centenário. Por motivos estranhos, não deu. Uma das iniciativas programadas
era publicar um livro narrando esta epopeia. Colaborei com vigor para a publicação,
que restou acabada sob o título Entre
duas viagens. Falta apenas a impressão, mas neste próximo mês estará na
praça.
Aproveito o
ensejo para reproduzir alguns de meus escritos sobre o saudoso homenageado,
começando com o texto abaixo.
CONVERSA
INICIAL
Não me recordo a data integral, ainda assim, inauguro esta
narrativa pela segunda viagem. Em 1995, tive a oportunidade de, viajando com
meu pai, atravessar de Cometa (empresa de ônibus) a Via Dutra (ligação do
Rio-São Paulo), partindo do Terminal Rodoviário do Tietê. Nessa ocasião, ouvi
dele a descrição de sua primeira viagem, navegada entre sua cidade natal,
Caballococha (na margem direita de uma “hermosa lagoa”, que desemboca no rio
Amazonas, a cerca de 50 quilômetros do trapézio amazônico) no Peru, e a cidade
de Manaus-AM (plantada à margem esquerda da foz do rio Negro).
Outros desdobramentos de sua vida também vieram à tona e serão
aqui relembrados. Talvez tenha sido esta – lamentavelmente, a última conversa
aberta e direta entre mim e ele, sem os ressentimentos que me angustiaram nos
derradeiros anos da existência dele.
A segunda viagem findou na Rodoviária Novo Rio (RJ). Ali fomos
alcançados pelo Renato Mendonça (meu irmão), que organizou comigo a publicação doe
livro.
Vou atrasar o relógio, cujo movimento bem distingue esta
retrospectiva. Meu pai assegurou-me que a “viagem” em direção a Manaus
aconteceu quando ele possuía onze anos de idade. Nascido em 1916, a viagem
sucedeu em 1927. Quanto ao seu natalício, cujo registro ele guardou religiosamente,
e foi revelado entre suas relíquias somente após seu falecimento, soube-se então
que aconteceu el lunes 17 de janeiro de 1916.
A empreitada rumo ao Brasil teve a iniciativa de sua mãe,
Victoria Malafaya, mulher que requer respeitosa e compreensível apresentação.
Todavia, quase nada se sabe sobre sua origem, somente que nasceu no Peru, em
Caballococha, hoje capital da província de Ramon Castilla, pertencente ao
Departamento de Loreto, na Amazonía
peruana. Era filha de Geraldo Malafaya e de Olinda Barsallo Malafaya, trazendo
como pude aferir sobrenomes fartamente espalhados pela região.
A data de seu nascimento se mantinha incógnita, nem o filho
sabia, e pior, quando do falecimento dela, em Manaus, o Cartório (2º ofício)
registrou-a como viúva de 56 anos(!), isto em 12 de dezembro de 1961. Recorrendo
ao registro de nascimento dos filhos Manuel e Francisco, pude estabelecer
proximamente o ano do nascimento dela.
Nascida em 1890 ou 91, era analfabeta e identificada por mestiza (designativo de grande número de
indígenas da região), Victoria, além disso possuía a cútis morena e baixa
estatura, e teve quatro filhos de três relacionamentos. Os dois primeiros
filhos: Laura Torres (1910-2000), que viveu em Iquitos, casada com Manuel
Miranda (excelente marceneiro) com quem teve seis filhos; Grimaldo Torres
(datas desconhecidas), que foi morador de Pucallpa; o terceiro (que utilizou
dois nomes) foi José Manuel Mendoza / Manuel Mendonça Malafaya (1916-2014) e,
por fim, Francisco (Malafaya) Saens (1918-1997), pai de quatro filhos. Os dois últimos viveram no Brasil.
El cholo, también llamado mestizo, es la mezcla
entre un mestizo y una mestiza, un mestizo y una indígena, un mestizo y una
blanca o un blanco y una indígena. Esta mezcla fue muy frecuente en los estados
o provincias de países latinoamericanos donde la población nativa terminó
siendo más del tercio de la población.
Nascida e sofridamente criada em Caballococha, numa noite de
fevereiro de 1927, depois de esquematizar a viagem, Victoria reuniu os filhos Manuel
e Francisco e, depois de se apoderar de uma canoa, sumiu do porto em direção à
tríplice fronteira, distante cerca de 50 quilômetros. O preceito inicial era
viajar somente à noite, para despistar a escapada e evitar uma possível busca pelo
“marido”. Como navegava rio abaixo, contava com a forte correnteza para
avançar.
Para melhor entender o fluxo de loretanos em direção ao Amazonas, em especial, para Manaus, convém
ressaltar que estes dois centros habitacionais bem aproveitaram a exploração da
hevea brasiliensis. No entanto, Manaus
obteve mais recursos, creio eu, pelo tamanho da área explorada e pela
proximidade com os países importadores da borracha.
Os moradores de Iquitos (fundado em 1757), sofriam à época
intensa atração de Manaus (estabelecido em 1669), atração ainda hoje sentida e
mantida, tanto que são consideradas cidades-irmãs. Ambas estão locadas na
floresta amazônica, exuberante vegetação que cobre grande parte de nove países
sul-americanos, constituindo a Amazônia Continental.
Meu pai
seguiu relatando: não podíamos nos expor, como pedir ajuda aos ribeirinhos,
devido nossa situação de fugitivos. Daí nos contentarmos em aqui e ali “passar
a mão” em algum tubérculo encontrado em plantação isolada, ou pescar,
utilizando rudimentar instrumento de captura, com soe ser um anzol improvisado
com um alfinete ou um prego.
A fartura de peixes
amazônicos facilitava a pesca e a lenha, para a cozedura ou o “assamento”,
segue abundante. Ainda assim, apenas o rio não permitia uma alimentação capaz à
tropa em retirada. Certamente, por
isso e por outras, meu pai recordava de ter passado fome e sono.
A mudança de
hábitos, a ausência de cômodos e, fortemente, a tensão de quem enfrenta o
incógnito em condições precárias, tudo isso pesava, em especial, sobre as
crianças. Tantos anos depois, lembra-se meu pai da passagem por uma fazenda de
gado e por uma plantação de feijão-de-metro (mais conhecido por
feijão-de-corda, próprio para o baião-de-dois). Do que, e se, aproveitaram, não
conseguiu recordar.
Apesar das
dificuldades iniciais, avançaram tanto que, é crível, a comitiva esquecendo-se dos “delitos” cometidos remou com mais
afinco em direção à fronteira, que se avizinhava. Cabe lembrar que, na região
amazônica, na medição entre dois pontos fluviais leva-se em conta a variante da
corrente de água. Ou seja, quando se navega de subida, contra a correnteza,
gasta-se claramente mais tempo. Dessa medida, como os peruanos desciam o rio, a
favor da corrente, eram beneficiados. Vantagem que veremos adiante, quando se
descrever a maneira sutil empregada pelos viajantes para enfrentar o turbilhão
produzido pelo rio Solimões, e ultrapassar a fronteira brasileira. (segue)
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