Na metade do século passado, os médicos Djalma Batista e
Moura Tapajós empreenderam uma viagem por países andinos, saindo de Manaus (AM)
e passando por Iquitos e Lima (Peru). Concluído o périplo, o primeiro publicou em
jornal o relato dos acontecimentos. Adiante, foi transformado em impresso, sob
o título: Itinerário transandino (1951),
que o autor dedicou ao companheiro de viagem.
LIMA, SUAS
FLORES E SEUS ENCANTOS
Lima é positivamente uma cidade de destino piedoso: tem também um Beato, Frei Martino de Porras, de cor escura, em cuja imagem o vemos sempre agarrado a uma vassoura... Certamente daí proveio toda a sua santidade: vasculhava os desvãos para a limpeza, ao mesmo tempo que removia as poeiras do entendimento e as dos corações, para aumentar a seara de Cristo...
Lima ainda é uma cidade nascida para a sabedoria: pouco depois dela surgiu uma das primeiras universidades do continente — San Marcos — ninho de estudiosos, matriz da formação cultural na América do Sul. Não sei se a Universidade de Santo Domingo é mais idosa: sei que San Marcos completou a 12 de maio deste ano o seu 4° centenário. Penetrámos com veneração nas suas salas e anfiteatros, nos seus laboratórios e corredores, e vimos com alegria a fonte onde muitos decanos têm sido justiçados com banhos memoráveis...
Presentemente está sendo construída uma Cidade Universitária, no caminho de Callao. Mas, não é tudo... Ainda um momento para visitarmos os museus, em Madalena Vieja, na companhia do distinguido colega Lopez.
No Museu Antropológico, primeiro as culturas pré-incaicas: Chavi, Paracas etc. Depois o mundo dos inkas reconstituído com amor, paciência e grande conhecimento: cerâmica, tecidos, contabilidade, instrumentos guerreiros, trajes, as figuras dos guerreiros; as múmias desvendadas pelo famoso arqueólogo Dr. Tello, envoltas em vários tecidos simbólicos, conservadas de cócoras, com os seus alimentos; os crânios trepanados, mostrando reconstituição perióstica e portanto uma alta perícia em técnica operatória, e as deformações cranianas estarrecedoras, — trepanações e deformações que obedeciam de certo a um sentido religioso propiciatório; representação em pedra e cerâmica de enfermidades e defeitos físicos, dando notícia de sua capacidade de observação e da extensão de seus conhecimentos.
Tudo isto, guacos e atestados de uma cultura adiantada, datando de milênios, até o início da colonização espanhola, em 1 500. Ao lado do Antropológico está o Museu Bolivariano. San Martin declarou a independência peruana, mas Bolívar consolidou-a: por isto seu culto é maior e sua glória mais admirada.
O Museu está instalado na casa em que residiu o próprio Libertador, e que havia sido construída para retiro do último ou dos dois últimos vice-reis. Em cento e poucos anos estão porém esmaecendo as pegadas de Bolívar: seus autógrafos já estão amarelecendo, seus móveis estão perdendo a resistência, as salas em que dava audiências, comia, dormia, orava e amava a famosa Manoelita, estão desprendendo o pó fatal...
Nas paredes quadros do grande soldado idealista, que deu a liberdade a cinco nações, vencendo batalhas ferozes, para morrer ingloriamente, cheio de apodos, lançados pelo seu próprio povo.
Bolívar ao lado de seus lugares-tenentes, no Museu da Madalena Vieja, já parece mais velho que os incas e seus antepassados. Só nos pareceu viçosa, mesmo, a figueira que suas mãos plantaram no quintal de solar.
Ao lado do Santuário Bolivariano está uma galeria de presidentes da República, alguns até com seis dias de exercício do poder...
No fim da visita, pus-me a meditar: daqui a cem anos, que restará dos museus da nossa idade? Do que fizeram os antigos, muito resistiu ao tempo, e o Dr. Tello pôs sua imaginação e sua ciência a decifrar os achados. E que restará da nossa civilização, regada com o sangue dos vencidos e com o suor dos fracos e dos humildes? Só uma coisa jamais se poderá esquecer da coroa de glórias de Bolívar, como da de San Martin e José Bonifácio: o espírito libertário, que é expressão mesma da santa, da bendita, da inigualável Liberdade!
Foi essa Liberdade que vimos paradoxalmente endeusada no Peru. Desde nossos primeiros contatos com a terra irmã ouvíamos falar com entusiasmo no "câmbio livre", fruto de uma política renovadora do governo Odria, que seguira de corpo e alma as sugestões da Missão Econômica Americana, vinda, a exemplo da famigerada Missão Abbink no Brasil, que tivemos o bom-senso de mandar embora, com um sardônico "muito obrigado", para estudar e orientar a política econômica do país.
Dizia-se: baixou o custo de vida, não há mais câmbio negro, o Peru é um dos poucos países em que há liberdade comercial e bancária... O assunto era sugestivo e passámos a inquirir todo mundo sobre ele: uns estavam entusiasmados, outros faziam restrições, e a nossa curiosidade crescia, à medida que deparávamos com artigos de importação de toda sorte, baratos, é verdade (automóveis de luxo por 70, 80 mil cruzeiros; rádios de mil cruzeiros; tudo muito, bom e por bom preço).
Demos afinal, com a ajuda de um médico experimentado e sagaz, no nó da questão: câmbio livre representa a morte da indústria no Peru, que se tornará progressivamente, mais e mais, em exportador de matérias primas brutas (economia colonial típica); representa o desemprego para o operariado; representa a constante sangria nas finanças nacionais, que nunca produzirão bastante dinheiro com que pagar dólares, mesmo fixado em 15 soles cada um; significa, em última análise, o jogo mais descarado dos poderosos, que ganham nas exportações e nas importações, ganham na compra de divisas com que abarrotam os bancos, e ganham na utilização de artigos de primeira, por preço relativamente baixo, mesmo assim elevado para o poder aquisitivo da massa.
Plaza das Armas, Lima - Peru
Vede, pois, que às flores e aos encantos de Lima se juntam espinhos e pedregulhos, que ferem o espírito e perturbam a caminhada do viajante que quer ver, pelo prazer spinoziano de conhecer...
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