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terça-feira, outubro 29, 2024

EUCLIDES DA CUNHA E OS SALESIANOS

Enquanto continuo a estudar o livro "De Tupan a Cristo" (1965), publicado pelos Salesianos, compartilho uma passagem sobre Euclides da Cunha (1866-1909), uma figura de grande relevância na literatura brasileira, com quem os Salesianos tiveram contato em Lorena (SP) e,
assim, fizeram uma valiosa reflexão a seu respeito. Euclides esteve no Amazonas cumprindo uma missão diplomática, navegando pelos rios Solimões e Javari.
Euclides da Cunha

 Essa memória é atribuída a dom Pedro Massa SDB (1880-1968).

Recorte da página sobre o autor de Os Sertões

 Euclides, apesar de seu caráter reservado, de sua conversa sóbria e reticente, apreciando mais o silêncio e a palavra alheia do que a própria, comprazia-se com aquele meio intelectual: padre Emanuel Gomes, futuro arcebispo de Goiânia [GO]; Helvécio, seu irmão, futuro arcebispo de Mariana [MG]; César Mourão, mais tarde bispo de Cafelândia [SP]; Aquino Correa, futuro acadêmico e arcebispo de Cuiabá [MT]; João Ravizza, latinista e membro da Arcádia Romana, Marcigalia, escritor e poeta, Lorandi, humanista e poeta, apreciado por Machado de Assis.

Compensava-se assim da monotonia daquela atrasada cidade do interior, onde o haviam chamado e o detinham serviços públicos de engenharia, e os salesianos retribuíam a amizade, estabelecendo-se – embora tão separados pelo pensamento e pela fé – uma relativa intimidade com o grande literato e escritor. De fato, como sinal dessa amizade ofereceu ele ao colégio a mesa paupérrima onde ele havia escrito no Rio Pardo os seus “Sertões – Campanha de Canudos”, publicado no ano anterior, despertando admiração e críticas na opinião pública.

Todos nós (eu também estava no meio deles) admirávamos o esplendor de seu talento, a beleza máscula de seu estilo retorcido, feito de “cipós literários”, as críticas elegantes e contundentes sobre os personagens de seu livro, que ele fotografava com traços profundos, eivados quase sempre da mais fina ironia, e seu trato modesto, às vezes revestido de ingenuidade tão chocante, dada sua alta personalidade intelectual: só lamentávamos nele a mais completa ausência de qualquer sentimento, mesmo de qualquer ideia sobre assuntos abstratos do sobrenatural: sua consciência honesta e digna, sua inteligência viva na abstração de números e cálculos, sempre preocupado pela ciência, não tinham um ponto sensível onde penetrasse um vislumbre sequer de luz; estava defendido, ou escravizado por uma couraça feita de aço, fria e invulnerável pela aridez do ceticismo: mas, educado e elegante, sabia respeitar a opinião alheia e as   fraquezas humanas.

Em fins de janeiro de 1904, nós clérigos havíamos de ser ordenados pelo Núncio Apostólico dom Júlio Tonti e, com licença do Superior, ousamos convidá-lo para paraninfar a nossa ordenação: aceitou, assistindo atento e respeitoso à longa cerimonia. Após o almoço festivo, Euclides com admiração de todos levantou-se e falou:

“Meus amigos, grato pela honra que me conferistes, admiro-vos sinceramente, acompanhando-vos na alegria desta hora tão auspiciosa para vosso coração. Minha inteligência, porém, na aridez de sua estrutura, rastejando na terra, tem pena em não vos poder acompanhar nos surtos de vossa vocação, de vossa alta miragem, do destino vosso: no entanto, se quanto se passou nesta hora tiver a substância luminosa da verdade, eu vos peço que rezeis por mim. Aceitai do vosso paraninfo não um conselho, que eu não posso vô-lo dar, mas apenas uma advertência amigável: se um dia as renúncias que acabais de aceitar, como herança do vosso futuro, pesarem sobre o vosso coração, sustente-vos na luta a alegria desta hora e a beleza que nunca se vele ou se tisne, da vossa vocação, porque é sempre doloroso, é humilhante, é indigno retroceder”.

Cinco anos depois, em 1909, não nos surpreendeu a triste notícia – porque acompanhávamos a tragédia de seu lar – de seu inesperado desenlace, quando no Rio de Janeiro, na antiga Estrada Real de Santa Cruz, uma bala assassina ceifava, pela morte prematura e trágica, a preciosa existência do atormentado escritor, de quem muito esperavam a história e as letras do Brasil. Como recordação e homenagem ao eminente aluno, há mais de quarenta anos foi fundado e funciona regularmente no Colégio “São Joaquim”, o grêmio literário “Euclides da Cunha”.

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