CATANDO PAPÉIS & CONTANDO HISTÓRIAS

sábado, dezembro 10, 2016

APARIÇÃO DO CLOWN: INTÉRPRETE


Alencar e Silva
O poeta Jorge Tufic ajudou-me bastante na publicação da plaqueta Intérpretes de Aparição do Clown, que apreciava o livro-poema de L. Ruas. A publicação ocorreu em 2010. Havia eu organizado os textos de quatro “intérpretes”; eis que surgiu o quinto.

Trata-se do falecido poeta Alencar e Silva, autor de Quadros da Moderna Poesia Amazonense (2011). Este post foi dali retirado.


A primeira amostra da poesia de L. Ruas (Pe. Luiz Augusto de Lima Ruas) foi-nos dada em 1958, ano de grande significação para a poesia amazonense, com o aparecimento da Pequena Antologia Madrugada, em que o poeta Jorge Tufic, seu organizador, nos oferece, nos sete poetas ali reunidos, a primeira visão de conjunto dos novos quadros da poesia amazonense, ou, como se lê em sua apresentação, "uma nítida visão do que tem sido o trabalho deste grupo que, há aproximadamente três anos, se organiza sob a égide do Clube da Madrugada".

L. Ruas está ali representado por quatro poemas — Versos à Margem de Um Poema de Rainer Maria Rilke, Sinos, Possível Noturno em Lá Menor e Evocação da França — aos quais retornei, muitos anos depois para, com brilho nos olhos, constatar quão pura, quão autêntica e definitiva me parece essa pequena amostra de sua poesia! Poesia que conserva inalterado o mesmo primitivo frescor e o mesmo sopro de eternidade que lhe infundem os valores que informam todo o labor intelectual de seu autor.

L. Ruas forma na linha de frente do modernismo amazonense, já em razão da participação no movimento madrugada, desde as primeiras horas, já pela notável contribuição expressa em sua poesia. Como ocorre com todos os verdadeiros artistas, poetas e escritores, L. Ruas deixa impresso, definitivamente, em toda a sua experiência convertida em expressão artística, o selo pessoal da identidade própria, chancela sem a qual ninguém pode aspirar à cidadania universal que as letras e as artes conferem a seus representantes.

Quer isto significar que estamos, efetivamente, diante de um grande poeta e escritor. Diante de um dos temperamentos intelectuais mais notáveis e mais completos/complexos já surgidos entre nós. (...)

Também de 1958 é o livro de estreia de L. Ruas: Aparição do Clown, poema cristão — ou crístico — dos mais belos que já se escreveram e que o autor quer que seja "um ato de adoração ao Cristo quando Herodes o chamar de louco". Poema que considero o seu magnum opus e de cujo foco luminoso ouso aproximar-me agora, dezessete anos depois, e não sem uma ponta de temor.

Não de que se possa trair em exagero e superestima a admiração que voto ao extraordinário texto, mas, sim, de que a tarefa esteja além do meu alcance, dada a realidade estonteante e quase inabarcável desse poema verdadeiramente belo e majestoso, e de brilho arrebatador.

Disse que se trata de um poema crístico. Mas ficou implícito, também, que não se trata de um poema fácil, que logo se entregue à nossa fruição. Ao contrário. Diria mesmo ser este um texto tremendamente difícil e labiríntico em seu maravilhoso hermetismo, visto que os seus vários segmentos luminosos podem, com efeito, confundir-nos (numa leitura menos atenta) e fazer-nos caminhar por seus desvios, afastando-nos, consequentemente, de seu núcleo, de seu tema fundamental, de sua significação humana e divina, assim como se, em vez da estrada real, tomássemos por atalhos que apenas nos deixassem perceber, ao longe, o rumor e as luzes da festa...

E é este o grande desafio que o poema nos propõe. Ou lhe identificamos os símbolos, ou sua chuva não nos molhará.

Começa pela circunstância de que por ele perpassa inominadamente o espírito do Cristo, que é a um tempo sua respiração e seu mistério fundamental.

Como identificá-lo, se seu nome não é uma só vez modulado? Na alusão dos signos? Nos símbolos? Na atmosfera prestigiosa do poema? Certamente que sim. Inclusive porque uma tal forma de mostrar-se — a um tempo incógnita e inconfundível — era/é, porventura, a mais consentânea com o feitio e a doce índole do Mestre. Não foi assim, porventura, na antemanhã da ressurreição? E assim também na estrada de Emaus? E no caminho de Roma? E no episódio da pesca milagrosa (E nenhum dos discípulos ousava perguntar: Quem és? sabendo que era o Senhor [João, XXI:12])?

Tenho para mim que é assim também que ele perpassa pelo poema. E que podemos adivinhá-lo na figura do pássaro ferido, vagando antes que surja a madrugada. Na hora em que não é dia nem é noite. No lusco-fusco crepuscular. Na hora da luz azul.

L. Ruas, autor de Aparição do Clown
É bom que se tenha presente, no entanto, que a poesia é também um pássaro, estrela ou fonte. E que o poema é também um hino à poesia. Da mesma forma que é um ato de adoração ao Cristo.

Temos, aí, portanto, as duas intenções, os dois segmentos ou impulsos básicos do poema — polos cuja distinção se impõe à atenção e sensibilidade do leitor interessado na compreensão plena do texto, porquanto uma leitura meramente hedonística, além de ser chuva que não molha, poderá, com efeito, fazer-nos tomar, equivocadamente, aquelas com realidades por uma só.

Dir-se-á que para isso concorrerá a própria complexidade do poema. Sem dúvida. Mas deve-se ver que, no caso, a complexidade e seu teor de mistério são positivamente elementos consubstanciais ao poema, à falta dos quais este não se consumaria, da mesma forma que a impossibilidade do perfume frustraria a perfeição da rosa.

É claro que um poema é o que é, e até o que não é; nunca, porém, o que poderia ser. Assim, no primeiro caso, o poema é (o que é): o que a compreensão plena do seu texto nos revela. No segundo, ele é (o que não é): o que o mistério da leitura nos sugere. No terceiro, ele não é (o que poderia ser): o que não está expresso nem sugerido no seu texto. Ou, ainda: No primeiro caso, teremos mergulhado em sua realidade. No segundo, apenas vivido a ilusão do mergulho. No terceiro, porém, teremos ficado completamente por fora da realidade do poema, circulando-lhe à volta, longe da possibilidade ou da ilusão do mergulho, a tentar impossivelmente captar-lhe uma realidade que não é a sua.

Donde se infere que somente uma leitura eficiente nos possibilitará a compreensão verdadeira do poema de L. Ruas, seguidas as indicações subliminares que ele mesmo nos fornece. Será preciso, por exemplo, atentarmos duplamente para a advertência do poeta, num dos pontos culminante do poema:
“lê de novo o poema. desce. vai ao fundo. / (...) não te afadigues. / o ritmo do meu nome é longo. majestoso. / quando souberes quantas rosas floriram / na paisagem perdida e de novo descobrires / o sonho inquieto e a aurora prateada /alegra-te, então, pois caminhas certo / rumo ao mistério inexprimível do meu nome.”

Quem fala assim é ainda a poesia, por cujos pés misteriosos (de fauno grego ou de arcanjo bizantino) o espírito humano movimenta-se no ritmo apolíneo ou na dança dionisíaca.

Símbolo do Clube da Madrugada
Nesses dois mistérios, o da poesia e o do Cristo, estarão os polos do poema de L. Ruas. E é por ambos que nos virá a salvação: pela condição de cativos do pássaro ferido (ser livre em essência é ser cativo) ou pelo incessante modelar daquela chama que nos queima a alma e as mãos, sem deixar que se perca uma só de suas fagulhas: “pois uma delas pode ser a luz que salvará tua face passageira quando raiar o sempiterno dia.”
A salvação — eis o sentido profundo da aventura do espírito. Eis o supremo anelo da condição humana. Eis o substrato do poema de L. Ruas.

Creio que muito se há de escrever sobre esse grande e torturante poema, cuja extraordinária plasticidade, aliás, não faria senão a fortuna do artista que se decidisse a transpô-la para a linguagem das tintas. Ou recriá-la em seus traços.


A obra de L. Ruas, longe de esgotar-se nesse poema, estende-se pelo ensaio, gênero em que já nos deu os volumes Linha d'água e Os Graus do Poético, e prossegue com Poemeu, coletânea de poemas em que nos reencontramos com a sua grande poesia e de cuja apresentação fomos o privilegiado subscritor e cujo texto transcrevemos a seguir, por refletir com precisão o nosso pensamento acerca do Autor — pássaro de altos remígios silenciado quando ia em pleno voo.



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